terça-feira, 20 de maio de 2014

HOMEM INVISÍVEL

Tenho insônia. Vou virado para o trabalho.

Na verdade já acostumei a trocar o dia pela noite e acho isso muito bom.

Não gosto de pessoas e na madrugada meus companheiros são só gatos vira-latas e mendigos andarilhos, como almas penadas, não fazem nenhuma diferença se estão lá ou não. Quando estou animado, dou uma vassourada neles. “Sem querer”.

Pego no trabalho às três da manhã e largo às nove.

Minha jornada de trabalho são de seis horas, enquanto a maioria das pessoas trabalham oito, nove, dez horas nos seus importantes escritórios, agradando seus chefes e aguardando ansiosos por um aumento, como cachorros que esperam uma pessoa terminar de comer uma asa de frango. Os olhos brilham por uns ossinhos.
“Você é tão generoso!”

Ergh.
Me sinto um homem de sorte.

No meu trabalho posso andar sozinho por aí, escutando coisas diversas.

De madrugada escuto gemidos, peidos, roncos.
Escuto passos desengonçados de alguma moça chegando bêbada em casa.
Escuto sombras planejando algum mal.
Escuto gritos por socorro.

Eu ligo meu MP3.
Encontrei num lixo aqui perto dias atrás.

Coloco naquele programa “Good times”, com um cara que força uma voz sensual fazendo traduções simultâneas de música romântica.
O chiado de mau contato do meu fone de ouvido é um quê à mais.

Gosto disso. É uma porção pequena de caos.

Começa a amanhecer e daqui a pouco pessoas com pressa começam a sair de suas jaulas para entrar em outra.

O café da manhã da moça do prédio de número 46 é um Marlboro filtro branco e um café no copo de isopor que ela compra na padaria da esquina. A sua saia aperta seus quadris. Ela sai andando rápido com seu salto alto pra pegar o metrô, pontualmente atrasada às 7:15.

Ela nunca termina de fumar o cigarro.
Joga quase a metade no chão, perto de mim.
Ela passa e eu aperto o meu pau.

Pego aquela metade de cigarro e faço o favor de terminar de fumar.

Cigarro tá caro hoje em dia.
É um desperdício acendê-lo pra fumar só a metade. Garota estúpida!

Dou um trago e meus lábios ficam sujos com o batom vermelho dela.

Ela me beijou e nem sabe.

Ninguém percebe a minha presença.

Sou o homem invisível, apesar do meu uniforme cor-de-abóbora e as faixas reluzentes.
Calado, deixo toda a rua limpa.
Faço o meu trabalho muito bem feito.

A minha área são 2 km da Rua Conde de Bonfim, no Rio de Janeiro.
Muita gente esquisita reside e passa por aqui.
De manhã minha cabeça começa a doer.

Não sei se é o sono ou as buzinas e pessoas passando que começam a me irritar.
Minha cabeça dói.

Eu odeio gente.

Queria colocar todos dentro do meu saco preto de lixo.
Aliás. Saco preto de lixo é sinal de lixo bom.

Sim. Lixo bom.

É sempre alguma coisa bem medonha.
Eles acham que colocando num saco preto de lixo, está acabado.
Ninguém sabe o que é.

Mas eu sei.

Meu pau fica duro quando vejo sacos de lixo preto.
Meu sorriso é igual o de uma criança.

Parece que acabo de encontrar o saco de presentes do Papai Noel.

Em saco de lixo preto eu já encontrei um poodle morto, livros, roupa ensanguentada, merda, restos de aborto, fotos de casais apaixonados, calcinhas velhas, papéis com número do CPF e identidade, cartas com endereço do remetente e nome completo.

Aliás, o poodle era da dona Marieta. Uma viúva de quase oitenta anos.
Ela me dá caixinha de Natal.
A velha agora anda sozinha com cara de tristeza.
Provavelmente vai morrer de depressão em breve.

Tirando a merda, eu levo todo o resto pra casa.
Faço coleção de algumas coisas legais.

Minha casa parece o laboratório científico do doutor Victor Frankenstein.

Só que eu tenho mais estilo.

Finalmente nove da manhã.
Esse sol escroto já estava me cegando.
Deixo meu material de trabalho no posto.

A rapaziada que faz o mesmo serviço que eu não vai muito com a minha cara.
Só porquê eu enfiei a porrada no gari bailarino que samba na apoteose.

Minha vontade era mandar ele sambar no quinto dos infernos.
Foi um surto.

Naquele dia eu estava quase uma semana sem dormir.
Pedi desculpas depois, mas ninguém acreditou na minha cara de maluco sádico.
Troco de roupa. Só tomo banho em casa.

Tenho meus caprichos para a hora da purificação.

Além do mais, a moça do mercadinho odeia o meu cheiro de trabalho.
Faço questão de ver a cara dela de nojo.
Passo no mercadinho para vê-la.
Compro um pacote de pão de forma, mortadela e uma Coca-Cola.
Esse vai ser meu almoço.

Ela me dá um bom dia forçado.
Eu estou fedendo a suor e lixo e eu sei que ela quer vomitar.
Eu gosto muito de ver a cara dela assim.
Chego em casa e preparo meu banho purificador.
Coloco meus sais de Aloe vera na banheira.

Achei tudo no lixo, inclusive a banheira.

É muito bom trabalhar naquela área.
Coloco uma fita k7 para tocar durante o almoço, que pra mim é jantar.
A fita, como quase tudo meu, achei no lixo.
É de um cara que gravou uma mensagem de despedida antes de se suicidar por amor.
Ninguém teve a consideração de guardar a fita.

Fica tranquilo, Jorge. Eu estou te ouvindo.

Janto meu sanduíche de mortadela.
Gosto de mortadela porque ela é feita do lixo que fica nos matadouros frigoríficos.
São os restos dos animais que não dá pra comer “normal”, então eles prensam tudo numa máquina e fazem essa iguaria.

Hummmm.

Deito. Preciso descansar.
Minhas janelas cobertas de papelão não deixam a luz entrar.
Só acordo quando anoitece.

Como é bom não ver gente.

Só vejo gatos vira-latas e mendigos andarilhos.
Somos invisíveis.

Me sinto um homem de sorte.